Já disse no post anterior que, apesar de ser psicóloga, eu levo o cérebro muito, muito a sério (isso foi uma piada). Acho inadmissível que psicólogos, professores e cuidadores de creche desconheçam as bases neurológicas da aprendizagem, desenvolvimento motor e afetos.
Pronto, agora posso continuar o meu assunto.
E o assunto de hoje é o luto. Vixi... psicopatas, tumores, luto... prometo amenizar nos próximos textos, mas precisava muito escrever sobre isso porque ando perdendo o sono devido à angústia da uma pessoa amada.
"Não adianta nem tentar me esquecer.
Durante muito tempo em sua vida eu vou viver."
(Roberto Carlos)
No fim da primeira guerra, quando os EUA receberam milhares de amputados, algo que antes era apenas uma lenda passou a ser levado a sério: a dor fantasma. Pernas inexistentes doíam. Braços inexistentes coçavam. Antes disso os médicos achavam que as sensações eram apenas delírio de pessoas traumatizadas, mas, com a enormidade das queixas, passaram a investigar o fenômeno e, assim, descobriram algo incrível.
A perna não existe mais, mas o espaço que ela ocupava no cérebro continua lá. O espaço cortical, tadinho, não foi avisado do acontecido e continua trabalhando como antes. Até que essa compreensão aconteça essas estranhas sensações realmente incomodam. E isso não é loucura, é apenas o cérebro pedindo ajuda para se reorganizar. E graças à plasticidade neural isso é possível de acontecer: neurônios migram e se rearranjam, conexões entre áreas distantes são estabelecidas e todo o espaço muda. O lugar do cérebro ocupado pela perna perdida passa, lentamente, a abrigar funções agora mais importantes. Uma pessoa que ficou cega precisa agora de mais equilíbrio e tato, certo? Não tem problema! O cérebro cuida disso, aumentando áreas responsáveis por estas funções em detrimento da decodificação da visão, agora desnecessária. Legal né?
Ok, depois desta aula vamos ao que interessa aqui: o luto.
O filho morreu, mas o espaço que ele ocupava no cérebro continua lá. Prá piorar, antes do filho morrer, o cérebro, para economizar energia, funcionava no automático. A gente escova os dentes no automático. Muda a marcha do carro no automático. Guarda a chave na bolsa no automático. Isso acontece porque não podemos nos dar ao luxo de pensar sobre absolutamente tudo no decorrer do dia. Não daria tempo! O cérebro, então, cria estratégias para a gente realizar tarefas sem pensar. E quem decide o que deve ou não ser pensado são os sistemas simpático e para-simpático.
Bom, o filho morreu, mas o lugar neurológico dele continua ocupado e o automático continua acionado. A mãe segue colocando o prato dele na mesa, continua preocupada com o horário de buscá-lo na escola, continua querendo comprar shampoo infantil para ele no mercado. Por quê? Porque isso é hábito, e os hábitos são atalhos feitos para o cérebro não ter tanto trabalho. O filho não existe mais, mas o hábito de se preocupar com ele ainda perdura para esta mãe. A musiquinha do desenho animado preferido dele ainda desperta a sua atenção. O cheiro dele desperta o seu amor.
"... que a saudade dói latejada.
É assim como uma fisgada no membro que já perdi."
(Chico Buarque, Pedaço de Mim)
Pronto, eu precisava dizer isso hoje. As pessoas precisam saber que existe uma razão neurológica para algo interpretado como sendo, apenas, sentimental. As pessoas precisam conhecer mais sobre o cérebro, uma vez que dependem dele para tudo no decorrer da vida.
Mas também tenho que lembrar que não sou uma louca fria e racional que quer explicar todas as emoções do mundo. Sei que a saudade dói e a tristeza é insuportável. Queria apenas dizer que as coisas mudam e a angústia diminui bastante.
O marido morreu, mas você continua dormindo apenas do seu lado na cama (e procurando por ele na cama no meio da madrugada). Continua esperando ele descer as escadas para passar o café. Continua pegando duas toalhas de banho para o banheiro. Continua comprando as frutas que só ele gostava para deixá-las, agora, apodrecendo na geladeira. E vale dizer que isso é MUITO angustiante porque dá a rápida ilusão de que a pessoa realmente está por perto seguido, na sequência, pela dureza fria da falta. Além de nos dar a impressão de que estamos enlouquecendo.
Entretanto, dia após dia o cérebro se reorganiza e o automático vai mudando. As emoções despertadas pela lembrança da pessoa passam a ser outras (veja bem: as conexões mudam!!!) e o lugar ocupado pela pessoa morta com o tempo vai sendo ocupado. E isso também é triste!!!! "Meu Deus como pude me esquecer do nome daquela atriz que ele adorava?" O excesso de lembranças nos afligem, mas a falta delas nos aflige ainda mais. Irônico, não?
Bom, mas o sistema nervoso leva tempo para mudar. Em média doze meses, mas são necessários, certamente, nove. Antes disso as mudanças cognitivas não são perceptíveis.
Bom, mas o sistema nervoso leva tempo para mudar. Em média doze meses, mas são necessários, certamente, nove. Antes disso as mudanças cognitivas não são perceptíveis.
"E agora, que faço eu da vida sem você?
Você não me ensinou a te esquecer.
Você só me ensinou a te querer
e te querendo eu vou tentando me encontrar."
(Fernando Mendes)
Vocês também achavam que essa música era do Caetano? Eu achava.
Mas o povo antigo era sábio. Intuitivamente sabiam da necessidade deste tempo e inventaram uma coisa útil chamada luto.
A pessoa enlutada era poupada por um ano de festas, risadas e multidões. E era uma enorme heresia ousar tirá-la desta situação. Ela podia se dar ao luxo de se isolar por um ano, esperando o seu cérebro superar as perdas. Não tinha a obrigação de ser feliz e podia se entregar à tristeza sem culpa ou vergonha. O problema era quando desejava sair do luto antes da hora (tudo tem que ter um problema não é?) e era censurada por isso.
Hoje a sociedade não suporta o luto. Hoje o desafio dos familiares e amigos passou a ser tirar a pessoa de casa e fazê-la sorrir o mais rápido possível. Se a coisa não melhorar em dois meses, uma depressão já é diagnosticada e uma medicação, prescrita. Entendo as boas intenções nessas tentativas, mas acontece que, com isso, todos atropelam o tempo necessário para a delicada reorganização neuronal. E a pessoa enlutada se sente na obrigação de superar a perda sem nem mesmo ter tido tempo suficiente para a sua elaboração. Daí sim temos o perigo da depressão. Não pela perda em si, mas pela esforço em esconder a angústia.
Pronto, eu precisava dizer isso hoje. As pessoas precisam saber que existe uma razão neurológica para algo interpretado como sendo, apenas, sentimental. As pessoas precisam conhecer mais sobre o cérebro, uma vez que dependem dele para tudo no decorrer da vida.
Mas também tenho que lembrar que não sou uma louca fria e racional que quer explicar todas as emoções do mundo. Sei que a saudade dói e a tristeza é insuportável. Queria apenas dizer que as coisas mudam e a angústia diminui bastante.
Mas, para isso, precisamos de tempo. Podemos, sim dispensar as estrelas por uns meses. Ei, elas estão lá há milhares de anos!!!! Elas podem esperar.
"Parem os relógios
Cortem o telefone
Impeçam o cão de latir
Silenciem os pianos e com um toque de tambor tragam o caixão
Venham os pranteadores
Voem em círculos os aviões escrevendo no céu a mensagem:
"Ele está morto"
Ponham laços nos pescoços brancos das pombas
Usem os policiais luvas pretas de algodão.
Ele era meu norte, meu sul, meu leste e oeste.
Minha semana de trabalho e meu domingo
Meu meio-dia, minha meia-noite.
Minha conversa, minha canção.
Pensei que o amor fosse eterno, enganei-me.
As estrelas são indesejadas agora, dispensem todas.
Embrulhem a lua e desmantelem o sol
Despejem o oceano e varram o bosque
Pois nada mais agora pode servir."
(W. H. Auden)
Sempre pertinente. ..bom te-la de volta!
ResponderExcluirah minha amiga, então é só esperar que o sol volta a nascer???
ResponderExcluirMeu Deus como eu AMOOOOOO vc! Just in time to help a friend in need. Você não pode parar de escrever nunca mais, ouviu, NUNCA!
ResponderExcluirBeijos
Tania
Tenho tanto orgulho da minha sabia filhinha ! Agora podemos chorar sem culpa . E só esperar que os neuronios se reorganizem .
ResponderExcluir(Comentário nada a ver com o post) Cá estava eu dando meu passeio rotineiro pela internet quando me lembro de um post muito antigo seu sobre Ana Paula Arósio e seus braços gordinhos(é incrível como aquilo nunca saiu da minha memória). Pois é, bateu uma saudade do blog, que desde a postagem das prateleiras não era atualizado. Então eu vasculhei meus favoritos e ao entrar no site fiquei muito feliz ao ver que o blog tinha recebido tantas atualizações!
ResponderExcluirQuero dizer que se não sou de comentar muito mas sou daqueles que fica sempre na torcida por novos posts, tenha certeza disso. Torço muito pelo blog e para você, desejo um 2014 cheio de alegria e tudo que pessoas incríveis como você merece.
Gabriel, querido, obrigada por suas lindas palavras e por sua fidelidade. Foi muito, muito especial receber esta sua mensagem. Eu adorei!!
ExcluirQuerida ! Após tanto tempo sem escrever, porque de repente sair do silêncio ? o que houve ? e sentindo saudades ainda ....! Luto por perda irreversível de alguém, pode após anos, quando distraídos somos alcançados por uma palavra simples ou uma frase sem contexto especifico e ali é disparado uma dor avassaladora e profunda, passo por isso as vezes ! O luto que mais me dói são os potencialmente reversíveis , aqueles que por covardia ou total descaso nos obrigam a fazer as mesmíssimas coisas e continuamos mutilados pra sempre , no mesmo casamento falido, no mesmo emprego frustrante e ainda com o trabalho de dia após dia nos convencer de que esta tudo bem. Gostoso você ter voltado a escrever, nos diga o porque da volta. Bjs mil
ResponderExcluirLi esse texto assim que você postou e escrevi bastante a respeito. Mas, sumiu... Reitero: brilhante análise. Argumentos fortes. E esse jeito generoso de tratar a realidade. Aprendi sobre meu luto que me vem judiando tanto. Foi uma ajuda essencial. Precisa mesmo ser divulgado para ajudar mais pessoas. Obrigada Claudia.
ResponderExcluirCompleto assinando o comentário: Raquel Volpato Serbino.
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