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sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O Jardineiro Fiel

(continuação do post anterior: LEGOLAND)

Ontem conversei com uma amiga que me confessava uma vantagem em ser lésbica:
-Não existe ciúmes. Eu, minha esposa, e todas as nossas ex-namoradas somos amigas e saímos sempre juntas. Entre nós não existe isso de "problemas com a ex" porque a ex dela, veja só, é a minha melhor amiga. Não é perfeito isso?
Eu ri e falei que era bobagem, que aquilo é uma civilidade natural entre as duas e não, necessariamente, uma característica da condição sexual delas. Ela insistiu e disse que não, que aquela era, sim, uma característica maravilhosa das mulheres lésbicas. 
Convencida e entusiasmada, eu falei:
-Puxa, que legal! Ahhhhh, eu quero ser lésbica também. Será que dá tempo?
-Impossível, Claudinha. Não conheço ninguém menos lésbica do que você.

Putz, verdade, também sinto isso. Não existe uma gota de masculinidade correndo nas minhas veias. Não que eu seja perua, afetada e nem fofa, nada disso, mas sou excessivamente feminina na minha essência.
Sempre desconfiei que o meu ânimus era gay. 

História ilustrada sobre o meu encontro com o ânimus:
Eu estava no primeiro ano de casamento e morava em São Paulo. Uma dia fui abastecer o carro e me apaixonei perdidamente por um pequeno jardim que havia no posto de gasolina. Tão alegre, tão delicado, tão provençal... nada a ver com a paisagem que o envolvia. Fiquei inexplicavelmente encantada pelo jardim (veja bem, nunca dei bola para plantas). Desci do carro e fui investigar quem havia feito o serviço. Descobri o telefone do jardineiro com uma lojista e liguei para o cara no mesmo dia.
Tudo bem que eu morava num apartamento pequeno, mas, ah, e daí?? Eu também poderia contratar um jardineiro, não é?!
No telefone eu disse que precisava de alguém para arrumar minhas floreiras e ele explicou que, antes de pensar num projeto, precisava me conhecer. Pegou o meu endereço e prometeu ir à minha casa de tarde.
Ele tinha, indiscutivelmente, uma voz gay ao telefone. Fiz então um bolo e esperei pelo meu jardineiro gay que queria me conhecer. Oba!
Quando a campainha tocou.... putz, pensa num cara lindo? Era ele. Bronzeado, musculoso, estiloso (uma coisa meio Paulo Zulu rural) e um belo rosto. Pazinhas e rastelinhos aparecendo nos bolsos da mochila cáqui à tiracolo. Um charme.
Conversamos a tarde inteira e ele topou fazer o serviço, mas tinha que ser rápido já que no fim do mês ele iria se mudar da cidade porque, segundo ele, iria "se casar com uma pessoa".
Gay.

O serviço ficou lindo e a minha varanda, agora, era a mais bonita do bairro.

Três anos depois...
Eu estava separada e deprimida, embora a minha varanda ainda fosse bela.
Um dia eu estava sentada nela, triste, lamentando a destruição das casas ao lado que foram demolidas para a construção de um prédio. No meio do enorme terreno que se formou abaixo, sobrou apenas uma jabuticabeira. Eu olhava para a jabuticabeira, prevendo o seu triste fim, quando um homem no terreno me acenou e gritou:
-Claudia, tá linda a sua varanda. Você tá de parabéns!!!
Era o meu jardineiro. Ele, coincidentemente, foi até o lugar resgatar a jabuticabeira e olhava para a minha varanda, admirando o serviço que havia feito.
Subiu no meu apartamento, tomou um suco comigo e conversamos. Eu tinha largado do meu marido e ele largou da "pessoa". Estávamos, os dois, solteiros e solitários. Ficamos amigos.

Mas, olha, entenda, não ficamos apenas amigos, ficamos inseparáveis. Além de jardineiro o cara era fotógrafo e me levava para todos os cantos com ele: estúdios, reunião com lindas modelos, laboratórios de revelação, feira de plantas, CEASA, loja de papéis especiais... eu passava o dia inteiro ao seu lado e almoçava na casa dele sempre que não tinha natação na hora do almoço.
-Claudia, você gosta de pastel de quê?
-Ah, nem sei, acho que de carne.
No dia seguinte a empregada dele fazia pastel de carne. Só para mim. Ele era vegetariano.
-Claudia você sabe fazer pão? Não??? Vou te ensinar.
E comíamos o pão de noite.
Passados uns meses, ele me perguntou:
-A que horas os passarinhos começam a cantar no seu apartamento?
-Putz, nunca ouvi. Acho que nem tem passarinhos por lá.
-Tem sim. Passarinhos cantam em todo lugar. Vou dormir na sua casa e descobrir o horário. Os passarinhos sempre cantam uma hora antes do Sol raiar e, se a gente ouvir eles, dá tempo de tomar um café e chegar aonde eu quero te levar.


Ele dormiu (no sofá cama!), ouviu os benditos passarinhos, e me levou para ver o sol nascer num lugar mágico em São Paulo: em cima da estação Sumaré do metrô, onde há um jardim encantado (criado e mantido por taxistas) e um sol que nasce num horizonte incrível. Desde então passamos a ir sempre lá.
Ouvir os passarinhos e ver o sol nascer era importante para nós. Durante estes momentos ele segurava na minha mão e ficava em silêncio.
E o jardineiro virou o meu tutor, meu guru: "Claudia, compre estes lápis de cor, desenhe, deite aqui  e durma um pouco, você está cansada, ouça esta música, leia este livro, pegue a lupa e veja o lindo formato destes líquens, compre esta orquídea para a sua varanda, passe a mão deste musgo e sinta a maciez".

Durante um ano inteiro o cara cuidou de mim. É claro que eu, vez ou outra, me envolvi com outros homens, mas ele sempre fazia questão absoluta de conhecê-los. E, engraçado, se divertia com eles e gostava de todos.

Um dia eu reclamei:
-Você passa o dia todo com uma máquina na mão registrando tudo. Até a minha mãe você já fotografou, mas nunca virou as suas lentes para mim. Por quê?
Ele respondeu:
-Claudia, você é linda e eu poderia passar a vida te fotografando, mas eu corria o risco de me apaixonar por você, e a minha função na sua vida não é essa.
-Ah, tá, se é assim então tá bom.

Nesta época eu já tinha conhecido o meu atual marido e o jardineiro, lentamente, saiu da minha vida. No último dia em que eu o vi ele me deu essas duas fotos acima: o passarinho que nasceu na samambaia da varanda e a flor amarela da minha floreira (agora me diz: existe ilustração melhor do que esta última foto para a ânima e o ânimus?).
Abaixo das fotos havia apenas a frase abaixo, escrita com a sua letra rebuscada de artista:

E foi assim que meu ânimus, salvando uma jabuticabeira perdida no meio de destroços, entrou na minha vida e me resgatou da depressão, me ensinando coisas que eu faço, religiosamente, até hoje:
  • Preste atenção aos pássaros.
  • Acorde cedo e veja o sol nascer.
  • Faça pão.
  • Pense no que você deseja e... realize!
  • Pegue uma lupa e perceba que o milagre está nos detalhes. Não veja a sua vida de fora! Mergulhe nela e maravilhe-se com as pequenas coisas.
  • Não precisa ser atraente e nem sexy para ser encantadora. Você não precisa ser fotografada. Não se preocupe com isso!
E que assim seja...
Quem me conhece acha que isso em mim é natural: passarinhos, artesanato, pães, comidinhas, valorização das pequenas coisas... mas não é. Foi o meu ânimus que me ensinou tudo isso depois de adulta, e foi com essas pequenas atitudes que eu sobrevivi à uma enorme crise.
E o final dessa linda história é que o cara sumiu e eu, engraçado, nunca perguntei o sobrenome dele. Nem o telefone atual. Desapareceu como um fantasma. Puf....
Sei que ele nunca vai ler esta homenagem, mas gostaria de dizer que lhe sou eternamente grata por tudo.

Bom, este foi o encontro com o meu ânimus gay, que, detalhe, nunca foi gay!! Mas isso é uma outra história.
Amanhã eu termino e explico porque eu comecei com esse papo de ânimus.

11 comentários:

  1. Incrivelmente lindo este post, não só pela clareza dos exemplos aqui citados, mas pela lição de vida que ele nos traz. Tem gente que se sente infeliz e fica procurando a felicidade a vida inteira e nem percebe que ela está presente nas pequenas e simples coisas da vida. Tenho acompanhado suas postagens, mas esta está especial. Bjs, Marcia Barros.

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    1. Obrigada Márcia :) Confesso que estava apreensiva, com medo de ter exagerado, já que a história é longa e demasiadamente pessoal. Tenho certeza que muitas pessoas tem histórias incríveis de encontros com o ânimus/ânima. São sempre encontros especiais!! Esta minha é só um dos muitos exemplos incríveis que a vida nos presenteia.

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  2. Adorei essa historia e confesso que fiquei louca para encontrar esse jardineiro! bjs!

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    1. O arquétipo do jardineiro é antigo e universal. A idéia de um homem que semeia, aduba e cultiva aparece em vários mitos e lendas. O jardineiro é o máximo de masculinidade, enquanto o feminino seria representado pela terra que acolhe a semente.
      Este era mesmo muito especial. Se vc morar em São Paulo há uma possibilidade de encontrá-lo em algum belo jardim.

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    2. Opa! Respondeu rápido! Bem, na verdade quando falei sobre o jardineiro havia pensado apenas na figura que parece ter acrescentado fatores importantes na sua vida. Mas adorei a explicação sobre o arquétipo do jardineiro, eu nunca havia pensado por esse lado... e veja.. tão obvio! Adorei seu blog, assumo que estou lendo posts antigos! rs

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  3. Alias, há muito tempo que não escutava ânimus. Lembro de ter visto isso na faculdade... vagamente... acho um tanto complicada entender essa relação, mas nao duvido dessa existencia... acho que realmente preciso encontrar esse "jardineiro" para conseguir arrumar algumas coisas na vida!

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  4. Lindo Claudinha!! e também gostaria de encontrar esse Jardineiro/Anjo... mas nem no Facebook? Volta lá no posto pra achar o moço!!
    No aguardo do próximo post
    Beijos
    Tania

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  5. Linda história mas (sempre tem um MAS) que furo Claudinha...
    Não tem o telefone do jardineiro fiel?!? Ia te pedir justamente isso, rs.

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  6. Puxa, escrevi uma mensagem enorme e na hora de publicar, puf...sumiu, como teu jardineiro fiel.
    Ela dizia assim, resumidamente: o que mais me impressiona na história toda (a parte dela mesma, linda!) é que te conheço há anos, somos confidentes, mas você nunca, jamais, falou sequer uma palavra sobre teu jardineiro fiel. Depois vêm me dizer que sou misteriosa...haha. Não conhecem minha amiga Có!
    Que belo presente da vida você recebeu, e que belo nos devolve com tua narrativa confessional. Essa semana assisti a um filme "As palavras" bem interessante. E lembrei dele ao fim do teu post. Decididamente ele merece virar um conto! Já pensou nisso? Então, pense, xuxu.
    Saudades de você e tuas incríveis, sensacionais e misteriosas histórias :)
    Love you, minha loura.

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  7. voce esta muito atrasada, kd a continuaçao?

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  8. rs é verdade, vc sempre tem histórias misteriosas......... esta eu não sabia. bjs Tiemi

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