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segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

A luta no luto


-Mãe, vamos embora!!!!
-Vai dormir no carro, minha filha!
De todas as maluquices da raça humana, a obrigatoriedade de passar a noite em um velório é a que eu acho a mais estranha.
Hello!!!! O cara está morto! Ele não precisa mais de companhia!!!

-Estica, assim...isso, daqui a pouco a câimbra melhora! 
Calma, calma: acho esquisito, mas compreendo.
O problema é que nas comunidades mais tradicionais isso é lei, e algumas pessoas levam tão a sério que o parente que não encarar o desafio fica difamado no grupo. Ah, e quem é vencido pelo sono e vai prá casa é um fracote! Ou pior: não tem consideração pela família enlutada.

Cada vez mais eu concluo que amanhecer em um velório não tem absolutamente nada a ver com o morto. Tem a ver, sim, em se autoafirmar vivo, superando o sono, a dor nas costas, a escuridão e o estranhamento de ter um defunto na sala. Como aquelas provas de resistência de um reality show que demoram 40 horas para terminar e fazem o povo sofrer horrores.
Sem falar no programa gótico que é passar a madrugada perambulando em um cemitério!
Bom, eu acho que essa é a razão do velório de 12 horas ininterruptas: uma prova de que você está vivo, saudável e corajoso.

-Você ainda está com o mesmo que conheci no enterro do Tio Zé?
-Não, prima, voltei a namorar aquele que veio no enterro da Vó Dindica.
-Ahhhh, aquele era muito fofo!
Mas... como nem tudo na vida é trágico, devemos também lembrar que o velório é uma ótima oportunidade para você colocar o papo em dia com os amigos e parentes distantes. Sem música para distrair, comilança para atrapalhar e nem louça para lavar. Sentam e ficam de papo a noite toda! Quer programa melhor? E se for o caso de uma morte natural e previsível, 90 % da conversa nem é sobre o morto!! Ele só é relembrado quando chega algum visitante desavisado que chora escandalosamente ao ver o caixão. Ou quando as coroas de flores vão chegando e precisam abrir espaço para acomodá-las.
Fora isso o papo num velório é sobre amenidades e, veja bem: não há nada de errado nisso. Que bom que além de vivos, conseguimos nos perceber normais.

-Meu deus, a unha do meu pé tá horrível! Que vergonha!!!
-Bobagem tia, ninguém tá reparando.
-Na pressa nem lembrei de calçar um sapato fechado...tsc.
E ainda tem mais maluquices!!
Falando agora em termos estruturais: e o investimento absurdo que se faz em um caixão de madeira nobre? E a grana que se gasta decorando o túmulo com mármore e bronze? E as flores que se perdem, esturricadas sem sombra nem água? O mais engraçado é que as flores dos velórios nunca são de plástico. Compramos flores de plástico para enfeitarmos as nossas casas e desperdiçamos as naturais num enterro.
Mas qual é razão de matarmos diariamente tantas flores nos cemitérios? Só porque o cara morreu temos que oferecer um sacrifício em sua homenagem? Isso não seria muito... PRIMITIVO para os nossos tempos? Seria a mesma coisa que amarrar um cachorro no mármore do jazigo e deixar ele lá, secando ao Sol. Tipo aquelas pirâmides do Egito onde os faraós eram enterrados com os respectivos escravos. Vivos.
-Ok, eu vou morrer, mas levo um monte de lindas flores comigo!!! 
Qual é a vantagem???

"Chorei por ter despedaçado as flores que estão no canteiro.
Os punhos, e os pulsos cortados. E o resto do meu corpo inteiro.
Há flores cobrindo o telhado e embaixo do meu travesseiro.
Há flores por todos os lados, há flores em tudo que eu vejo.
As flores de plástico não morrem."
Titãs e o velório sob a perspectiva do morto. Sim, porque só mesmo lá para haver flores embaixo do... travasseiro.

PS:Felizmente existe no mundo um cara chamado Rafinha Bastos para ilustrar um assunto tosco como esse.
Colocar aqui um morto de verdade ia ser impossível do ponto de vista do bom gosto e respeito pelo tema.


Talvez o ritual de varar a noite num cemitério seja apenas uma maneira de empurrar a dura realidade da perda para um outro dia. Tipo:
-Enquanto amanhã não chega eu só vou pensar na minha dor nas costas, na garrafa de café doce e ácido e na minha amiga que engordou. Sim, porque quando eu puder estar na cama eu vou sentir muita saudade da pessoa morta e ISSO ainda é insuportável para mim.

E o dinheiro gasto com o morto é uma maneira simbólica de investir nele pela útlima vez e dizer que ele vai fazer falta. E vai mesmo, uma vez que você vai ficar longos meses pagando a prestação do velório ao invés de levar a molecada no cinema.
Bem fazem os japoneses que deixam uma discreta caixinha para os visitantes depositarem um dinheiro para ajudar nas despesas do velório. Bacana, né? Muito civilizado esses orientais. E, pela tabela recente, o mínimo que se deve depositar na tal caixa são 30 reais.
Hum... se o cara for popular ainda dá para pagar um pão de queijo no café da manhã.

Preciso urgentemente me convencer de que os rituais do luto são assim: tudo é simbólico e nada deve ser contestado. Muito menos por mim! O tal processo do luto sempre nos faz lembrar que nada mais somos do que uma enorme tribo, com um significado para cada pequeno objeto e/ou comportamento.
E assim será... forever and ever...



2 comentários:

  1. Gostaria de conversar mais sobre isso com você. Não em um velório, pelamor!

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  2. E' tudo muito logico o que voce escreve, muito perfeito. As fotos!!! :D
    E' como eu veria as fotos.
    Fantastico, tudo faz tanto sentido (senso?). E' como eu gostaria de escrever!!!
    Mas tambem me faz lembrar de um caso que aconteceu comigo. Uma amigo morreu, epoca de faculdade. No velorio, o caixaozinho dele estava la no fundo do salao, sozinho, enquanto os visitantes ficavam completamente do outro lado, na entrada. Eu fiquei longe tambem, como todo mundo.Nao queria nem chegar perto do caixao. Quando cheguei em casa, chorei muito por ter me lembrado dele tao sozinho ali. As pessoas deveriam estar com ele naquele momento porra! Alem de morrer, ficou totalmente isolado... Foi quando entendi que ficar ali perto e' fazer sua ultima compannhia aaquela pessoa. E' um respeito nao ao morto, mas aa memoria dele - e agente de alguma maneira usa o corpo dele pra transmitir essa mensagem.
    Ja' assistiu o filme japones "Departures"? Acho dificil nao desmontar com esse filme, que tao linda e dignamente trata exatamente desse tema.

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