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quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Naquele sofá ele deitava sempre e me dizia sempre o que é viver melhor...


Não tem prá ninguém. A febre agora entre a molecada miúda é a Peppa.
Peppa Pig é um desenho delicioso que passa no Discovery Kids sobre o cotidiano de uma família de porcos: pai, mãe, filha e filho. Desenho com linhas simples e temas rotineiros da vida das crianças. Uma graça. Para quem não conhece, deixo aqui um episódio:



No desenho da Peppa o pai é divertido e amoroso, mas é um bobalhão. Em todos os episódios a temática se repete: o pai faz tudo errado, a mãe (que sempre faz tudo certo) fica com pena dele, tenta contornar a situação e as crianças sempre acham graça. A dinâmica é basicamente essa.
Semana passada, enquanto estávamos vendo Peppa, o meu filho de 7 anos disse algo realmente curioso:

Uma família da pesada: pai paspalho, 
filho mais velho idiota, 
mulheres espertas.
-Mãe, por quê é que em todos os desenhos o pai é um idiota?

E todos os desenhos que conheço sobre famílias me passaram pela cabeça: idiota, idiota, idiota, idiota, idiota e... super idiota!!
Uau, filho, grande descoberta! Por quê será? Por quê será que plantam essa imagem paterna em todas as crianças do mundo ocidental desde cedo?
Idiota, preguiçoso, porco, excêntrico, inconsequente, irresponsável, estabanado, ingênuo, imaturo e as vezes alcoólatra. O pai é sempre um "loser" e sempre motivo de piada para os personagens e nós, telespectadores, rolarmos de rir.

O incrível mundo de Gumball: 

filha genial, pai totalmente retardado.
E o engraçado é que em todos os desenhos a mãe, por outro lado, é esperta e, em alguns, tem uma paciência maternal com o próprio marido, dando piscadelas e sorrisinhos para as crianças relevarem o pai. Ele é sempre tratado como um personagem "café com leite" que tem sérias dificuldades em ser adulto e precisa da nossa compreensão, coitado.
O que será que acontece?
Billy e Mandy: pai ridículo e imaturo, 
filho idem. Mandy genial e séria. 
Para compreender melhor o fenômeno imaginei o contrário. Imagina se os homens dos desenhos fossem inteligentes e talentosos e tivessem que suportar as suas esposas retardadas? Não seria cruel? Não haveria um punhado de abaixo-assinados de grupos feministas querendo proibir a coisa? E por quê é que, com os homens, pode?
Sacanagem.


Claro que tenho consciência de um jeito pueril dos homens serem, mesmo depois de adultos. Tenho pai e tenho marido. Sei que os homens são uns eternos moleques e que, mesmo por baixo de uma fachada autoritária e séria, mora ali um menino cheio de manias estranhas e atitudes doces e infantis.

"Há um menino, há um moleque, 
morando sempre no meu coração. 
Toda vez que o adulto balança ele vem prá me dar a mão."
(Milton Nascimento)


The Cleveland Show: pai ridículo.
Mas o povo dos desenhos extrapola. Tirando o Fred Flintstone e seu amigo Barney Rubble (que são bem bobinhos, mas não deixam de ser homens exemplares), os outros são bem retardados. Não gosto de saber que meus filhos crescem rindo de figuras masculinas que não merecem a nossa admiração. Acho que a imagem do pai deveria ser algo imaculado e exemplar. Pelo menos na primeira infância quando o papel masculino é definido para as crianças, tanto menino quanto menina.

Zé Buscapé: pai preguiçoso e burro; 
mãe brava e esperta.
Talvez meu filho de 7 anos tenha feito uma descoberta incrível. Talvez seja essa a raiz de toda a problemática moderna de não respeito às figuras de autoridade. Os Simpsons, esta semana, comemoraram 25 anos de existência e é bem possível que há 25 anos olhamos para os nossos pais no sofá e logo lembramos da figura patética do Homer. Tadinhos. Maldade pintar um pai de família cansado como um inútil preguiçoso.    

Os Flintstones: pai atrapalhado e imaturo; 
mãe madura e esperta. 
E tem mais!! Nos desenhos a maioria dos meninos homens é igualmente burra enquanto as meninas são inteligentes. Por quê??? Coitado dos meninos. Não tem, em seus desenhos favoritos, figuras masculinas sábias e dignas para se espelharem nem na idade em que estão e nem para um futuro distante.
Muita gente se preocupa com as menininhas que crescem brincando com Barbies magras e loiras e, com isso, têm a sua auto estima abalada, mas ninguém até hoje se preocupou com os pobres meninos que crescem assistindo (e rindo!!!) da sua condição masculina patética.

Os Simpsons: pai patético, filho imbecil, 
mãe esperta e filha genial
Não tenho a menor ideia do porquê a indústria infantil de entretenimento decidiu rotular os pais como imbecis e as mães como espertas e tolerantes. Os meninos como burros e pseudo-delinquentes e as meninas como geniais. É muita coincidência o mesmo tema se repetir em tantas histórias. Será que um bando de feministas loucas dominaram o processo de criação dos personagens? Será que as mulheres estão querendo se redimir de séculos de dominação masculina no ambiente doméstico?
Não importa a razão. O importante é que sutilmente a autoridade paterna e a condição masculina vem sendo ridicularizada sem a gente nem mesmo perceber. Com muito humor, muita diversão, mas de forma definitiva.

Goku e seu pai, Bardock
O feminismo caminhou muito nas últimas décadas, mas a verdade é que não podemos evoluir rindo dos homens. Porque precisamos arranjar maneiras legais de criar nossos meninos. Porque nossas filhas precisam crescer sabendo que os homens são igualmente sábios e dignos de respeito. Porque o pai deitado no sofá é o nosso companheiro de vida.

Por mais que eu odeie desenhos japoneses vou começar a incentivar meus filhos a assistirem Dragonball Z. Lá o pai do Goku é forte, corajoso e sábio, como todos os pais deveriam ser aos olhos de uma criança. Aliás, a árvore genealógica desses Super Sayajin é feita só de homens incríveis.
Santa sabedoria oriental...


"E nos seus olhos era tanto brilho 
que mais que seu filho eu fiquei seu fã."



De qual outra família vocês lembram nos desenhos animados?













quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Chiclete


Já faz mais de uma semana que ouço a mesma música ininterruptamente porque ela me acalma quando eu preciso de colo no meio da rotina.
A mesmíssima música toca no meu carro, na minha cozinha e no meu computador enquanto leio bobagens. Quando acaba eu ponho de novo. E de novo.
Chama-se Wild World e quem a compôs e canta lindamente é o Cat Stevens. Putz, já é a vigésima vez que falo do cara aqui no blog. Não sou fã, tá? Apenas gosto bastante.

Bom, escrevo sobre isso aqui hoje porque já faz algum tempo que acredito piamente na teoria que diz que quando uma música não sai da nossa cabeça é sinal de que existe ali uma mensagem que precisa ser decodificada pela consciência. Pseudo verdades de pseudo psicólogos que se acham capazes de colocar sentido até nas músicas chicletes. Eu, apesar de cética, acredito na teoria maluca porque todas as vezes que tentei entender mensagens escondidas em músicas insistentes elas realmente faziam sentido.
Tudo bem que essa canção específica é bonita e tal, mas isso não justifica a minha teimosia em ouví-la. E me intriga muito o fato dela me sensibilizar além da conta. Não costumo perder tempo com músicas que usam em abundância a palavra... baby.

PS: eu ADORO o momento 2:37 até o 2:51. 

Mundo Selvagem

Agora que já perdi tudo para você, você diz que quer começar algo novo e isso está partindo meu coração. Você está indo embora. Baby, estou lamentando.
Mas se você quer mesmo partir, tome cuidado. Espero que tenha muitas coisas bonitas para vestir,
mas saiba que as coisas bonitas tornam-se ruins lá fora.
Oh baby, baby, é um mundo selvagem. É difícil atravessar apenas com um sorriso.
E eu sempre lembrarei de você como uma criança, garota.
Você sabe, eu vi muito do que o mundo pode fazer e isso está partindo meu coração em dois
porque eu nunca quero te ver triste. Não seja uma garota má.
Mas se você quiser partir, tome cuidado. Espero que faça bons amigos lá fora,
Mas apenas se lembre que existem muitos amigos ruins. Cuidado.

Bom, eu sempre achei que esta música poderia ser a carta de um pai para uma filha que sai de casa pela primeira vez. Um pai bem bobo por sinal! Um idiota que logo no começo já joga na cara da filha que ele abandonou a própria vida por causa dela e que ela agora, mal agradecida, resolveu crescer.
Isso não me emociona. E não gosto de pais que adoram falar com autoridade sobre os inúmeros perigos da vida só para jogar na cara depois um "Eu te avisei, eu te disse!!!".  Essa interpretação da música, definitivamente, não tem a ver comigo. Soa como o Cartola avisando à filha que o mundo é um moinho. Não gosto de previsões negras sobre o futuro dos outros.
Principalmente dos filhos.

Outra leitura que podemos fazer da mesma canção (inclusive a mais óbvia e a razão pela qual ela fez tanto sucesso) é a história de um cara que acabou de levar um fora e, agora, deseja sorte para a ex.
Isso é bacana. Quando um relacionamento acaba, por pior que seja o seu fim, é sempre necessário desejar boa sorte ao parceiro. Não só desejar, mas torcer de verdade pela sua felicidade com o restinho do amor que sobrou no fundo da gaveta do coração. O cara tinha outra? Torça para que a outra o faça feliz. Simples assim.
Até que gosto da ideia, mas Cat Stevens faz questão de ressaltar que ela poderá se ferrar no tal mundo selvagem e nada me garante que ele também não vai lançar um "Eu te disse!!" no futuro. Não, isso definitivamente também não me emociona. Se for para desejar boa sorte sou mais o Peninha com a sua lindíssima Sonhos que diz com serenidade que ele vai ser feliz e que ela não o destruiu. Ufa.

"Mas não tem revolta, não
Eu só quero que você se encontre 

Saudade até que é bom 
É melhor que caminhar vazio 
A esperança é um dom que eu tenho em mim 
Eu tenho, sim
Não tem desespero, não
Você me ensinou milhões de coisas 
Tenho um sonho em minhas mãos 
Amanhã será um novo dia 
Certamente eu vou ser mais feliz."


Peninha é cafona e, por isso, deixo aqui o seu melhor intérprete .

Se nada disso faz sentido, qual seria então a razão da música me perseguir? Como prosseguir na minha pesquisa?
Resolvi então rever o video e lá, logo no início, Cat Stevens diz claramente: escrevi essa música para mim mesmo. Ao ouvir isso os meus olhos lacrimejaram. Bingo! Direto na ferida.
Essa música está me perseguindo porque está sendo dita (ou gritada) por mim para mim mesma. "Claudia, querida, ao contrário do que você sempre pregou, o mundo é selvagem e o mau existe. Sempre te vi como uma garotinha e, por isso, não quero te ver triste."

É a música do ritual da passagem. Este ano faço 40 anos e estou, como Cat Stevens, me preparando para um segundo retorno ("second comeback" que ele diz no vídeo). Já estava na hora de perceber que o mundo é selvagem. Pode parecer bobagem, mas não é.
E agora? Agora o jeito é aprender a andar pelo lado selvagem da vida. Chega de chiclete cor de rosa.






segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Fisgadas


Já disse no post anterior  que, apesar de ser psicóloga, eu levo o cérebro muito, muito a sério (isso foi uma piada). Acho inadmissível que psicólogos, professores e cuidadores de creche desconheçam as bases neurológicas da aprendizagem, desenvolvimento motor e afetos.
Pronto, agora posso continuar o meu assunto.

E o assunto de hoje é o luto. Vixi... psicopatas, tumores, luto... prometo amenizar nos próximos textos, mas precisava muito escrever sobre isso porque ando perdendo o sono devido à angústia da uma pessoa amada.


"Não adianta nem tentar me esquecer. 
Durante muito tempo em sua vida eu vou viver."

(Roberto Carlos)


A minha teoria é a seguinte: mais do que uma saudade, o luto é uma reorgnização neurológica que leva tempo e requer paciência.

No fim da primeira guerra, quando os EUA receberam milhares de amputados, algo que antes era apenas uma lenda passou a ser levado a sério: a dor fantasma. Pernas inexistentes doíam. Braços inexistentes coçavam. Antes disso os médicos achavam que as sensações eram apenas delírio de pessoas traumatizadas, mas, com a enormidade das queixas, passaram a investigar o fenômeno e, assim, descobriram algo incrível.

A perna não existe mais, mas o espaço que ela ocupava no cérebro continua lá. O espaço cortical, tadinho, não foi avisado do acontecido e continua trabalhando como antes. Até que essa compreensão aconteça essas estranhas sensações realmente incomodam. E isso não é loucura, é apenas o cérebro pedindo ajuda para se reorganizar. E graças à plasticidade neural isso é possível de acontecer: neurônios migram e se rearranjam, conexões entre áreas distantes são estabelecidas e todo o espaço muda. O lugar do cérebro ocupado pela perna perdida passa, lentamente, a abrigar funções agora mais importantes. Uma pessoa que ficou cega precisa agora de mais equilíbrio e tato, certo? Não tem problema! O cérebro cuida disso, aumentando áreas responsáveis por estas funções em detrimento da decodificação da visão, agora desnecessária. Legal né?

Ok, depois desta aula vamos ao que interessa aqui: o luto.
O filho morreu, mas o espaço que ele ocupava no cérebro continua lá. Prá piorar, antes do filho morrer, o cérebro, para economizar energia, funcionava no automático. A gente escova os dentes no automático. Muda a marcha do carro no automático. Guarda a chave na bolsa no automático. Isso acontece porque não podemos nos dar ao luxo de pensar sobre absolutamente tudo no decorrer do dia. Não daria tempo! O cérebro, então, cria estratégias para a gente realizar tarefas sem pensar. E quem decide o que deve ou não ser pensado são os sistemas simpático e para-simpático.

Bom, o filho morreu, mas o lugar neurológico dele continua ocupado e o automático continua acionado. A mãe segue colocando o prato dele na mesa, continua preocupada com o horário de buscá-lo na escola, continua querendo comprar shampoo infantil para ele no mercado. Por quê? Porque isso é hábito, e os hábitos são atalhos feitos para o cérebro não ter tanto trabalho. O filho não existe mais, mas o hábito de se preocupar com ele ainda perdura para esta mãe. A musiquinha do desenho animado preferido dele ainda desperta a sua atenção. O cheiro dele desperta o seu amor.

"... que a saudade dói latejada. 
É assim como uma fisgada no membro que já perdi."
(Chico Buarque, Pedaço de Mim)


O marido morreu, mas você continua dormindo apenas do seu lado na cama (e procurando por ele na cama no meio da madrugada). Continua esperando ele descer as escadas para passar o café. Continua pegando duas toalhas de banho para o banheiro. Continua comprando as frutas que só ele gostava para deixá-las, agora, apodrecendo na geladeira. E vale dizer que isso é MUITO angustiante porque dá a rápida ilusão de que a pessoa realmente está por perto seguido, na sequência, pela dureza fria da falta. Além de nos dar a impressão de que estamos enlouquecendo.
Entretanto, dia após dia o cérebro se reorganiza e o automático vai mudando. As emoções despertadas pela lembrança da pessoa passam a ser outras (veja bem: as conexões mudam!!!) e o lugar ocupado pela pessoa morta com o tempo vai sendo ocupado. E isso também é triste!!!! "Meu Deus como pude me esquecer do nome daquela atriz que ele adorava?" O excesso de lembranças nos afligem, mas a falta delas nos aflige ainda mais. Irônico, não?
Bom, mas o sistema nervoso leva tempo para mudar. Em média doze meses, mas são necessários, certamente, nove. Antes disso as mudanças cognitivas não são perceptíveis.

"E agora, que faço eu da vida sem você? 
Você não me ensinou a te esquecer. 
Você só me ensinou a te querer 
e te querendo eu vou tentando me encontrar." 
(Fernando Mendes)
Vocês também achavam que essa música era do Caetano? Eu achava.


Mas o povo antigo era sábio. Intuitivamente sabiam da necessidade deste tempo e inventaram uma coisa útil chamada luto. 
A pessoa enlutada era poupada por um ano de festas, risadas e multidões. E era uma enorme heresia ousar tirá-la desta situação. Ela podia se dar ao luxo de se isolar por um ano, esperando o seu cérebro superar as perdas. Não tinha a obrigação de ser feliz e podia se entregar à tristeza sem culpa ou vergonha. O problema era quando desejava sair do luto antes da hora (tudo tem que ter um problema não é?) e era censurada por isso. 


Hoje a sociedade não suporta o luto. Hoje o desafio dos familiares e amigos passou a ser tirar a pessoa de casa e fazê-la sorrir o mais rápido possível. Se a coisa não melhorar em dois meses, uma depressão já é diagnosticada e uma medicação, prescrita. Entendo as boas intenções nessas tentativas, mas acontece que, com isso, todos atropelam o tempo necessário para a delicada reorganização neuronal. E a pessoa enlutada se sente na obrigação de superar a perda sem nem mesmo ter tido tempo suficiente para a sua elaboração. Daí sim temos o perigo da depressão. Não pela perda em si, mas pela esforço em esconder a angústia.

Pronto, eu precisava dizer isso hoje. As pessoas precisam saber que existe uma razão neurológica para algo interpretado como sendo, apenas, sentimental. As pessoas precisam conhecer mais sobre o cérebro, uma vez que dependem dele para tudo no decorrer da vida.
Mas também tenho que lembrar que não sou uma louca fria e racional que quer explicar todas as emoções do mundo. Sei que a saudade dói e a tristeza é insuportável. Queria apenas dizer que as coisas mudam e a angústia diminui bastante.
Mas, para isso, precisamos de tempo. Podemos, sim dispensar as estrelas por uns meses. Ei, elas estão lá há milhares de anos!!!! Elas podem esperar. 

"Parem os relógios 
Cortem o telefone 

Impeçam o cão de latir 

Silenciem os pianos e com um toque de tambor tragam o caixão 
Venham os pranteadores 
Voem em círculos os aviões escrevendo no céu a mensagem: 
"Ele está morto" 


Ponham laços nos pescoços brancos das pombas 

Usem os policiais luvas pretas de algodão. 


Ele era meu norte, meu sul, meu leste e oeste. 

Minha semana de trabalho e meu domingo 

Meu meio-dia, minha meia-noite. 
Minha conversa, minha canção. 


Pensei que o amor fosse eterno, enganei-me. 

As estrelas são indesejadas agora, dispensem todas. 


Embrulhem a lua e desmantelem o sol 

Despejem o oceano e varram o bosque 

Pois nada mais agora pode servir."
(W. H. Auden)











Nuts


A história aconteceu com a amiga de uma pessoa muito próxima. Moça casada, sem filhos, casamento feliz e marido bacana. Mas um dia ele a chamou para uma conversa séria. E a fala dele foi mais ou menos assim:
-Querida, eu preciso da sua ajuda. Já faz algum tempo que ando tendo pensamentos insistentes e apavorantes. Tenho desejo sexual por crianças. Nunca tive isso e não sei porque estou tendo agora. Vejo crianças e me dá vontade de fazer sexo com elas. Acho isso desprezível e não desejo prejudicar ninguém, mas tenho medo de um dia não conseguir me controlar. Estou te contando porque já não sei mais o que fazer.

A moça pirou. Teve nojo, raiva, pena, tristeza e acabou por se separar. Depois de alguns meses descobriu algo incrível: o ex marido estava com um tumor cerebral. Na área que comanda a sexualidade. Operou e os desejos por crianças cessaram.
Já ouvi alguns pedófilos dizerem: "Não me tirem da cadeia! Não me soltem porque irei estuprar e matar mais crianças por ai.", como se estivessem pedindo ajuda para impedir um impulso pelo qual não têm controle.

Uma outra amiga também se separou quando o marido se tornou agressivo e frio. Depois de separados, o mesmo diagnóstico: tumor cerebral. E o médico afirmou que todo o estranho comportamento dos últimos tempos poderia, sim, ser explicado pelo fato. Ela cuidou dele até o fim.

Charles Whitman era um rapaz normal e legal mas, do nada, entrou atirando na torre da Universidade do Texas matando 13 pessoas e ferindo dezenas. Esses eventos não existiam antes de 1966. Foi ele quem inventou essa moda que, hoje, virou epidemia. Mas antes de fazer essa imensa bobagem o cara escreveu uma carta pedindo para alguém, por favor, fazer uma autópsia em seu cérebro (ele sabia que seria morto na universidade), uma vez que ele suspeitava que, além da enxaqueca, havia algo na sua cabeça algo que justificasse esse desejo estranho de matar. Bingo! Um tumor já necrosado do tamanho de uma noz deformava e comprometia a sua amídala cerebral, responsável pelas emoções.

Esta semana li na Folha de São Paulo a história de um neurocientista que também defende a ideia de que os psicopatas tem disfunções anatômicas que justificam a falta de afeto e empatia. Não é a primeira vez que li sobre isso, mas o gozado deste texto é que o responsável pela pesquisa se submeteu a um exame de imagem e descobriu que ele próprio tem o cérebro de um psicopata. Diz ele que isso justifica uma frieza que sempre espantou os seus familiares.
Na USP há uma importante linha de pesquisa que diz que adolescentes que roubam os pais, mentem compulsivamente e apresentam pequenos comportamentos delinquentes tem sérias disfunções anatômicas que se revelam na cintilografia de perfusão cerebral. E o lobo pré-frontal costuma ser o alvo dos problemas.

Sempre acreditei nisso. Já atendi algumas crianças psicopatas e, mais do que atender a criança em si, tinha uma enorme preocupação em esclarecer aos pais:
-A culpa não é dele e a culpa não é de vocês. Por favor, entendam e não se martirizem por isso. Ele nasceu assim. 

Houve uma época em que a ciência culpava os pais de crianças autistas pelo estranho comportamento. A psicologia dizia que era uma falha no início da relação da mãe com o bebê. Balela! Hoje se sabe que os autistas tem uma disfunção no sistema límbico. Simples assim. Mas antes disso muitos pais se culparam durante décadas por causa de julgamentos precoces.

Fora a infinidade de problemas de comportamento que ficam como sequela depois de acidentes com traumatismo craniano. Conheço muitos casos de pessoas que, depois que se acidentaram, passaram a mentir, roubar e serem pessoas ruins. A família dizia que era trauma do acidente, que estavam querendo chamar a atenção, que precisavam de psicoterapia, mas os neurologistas insistiam: é sequela do acidente. Tem gente que fica cega, com problemas de memória, tem gente que fica paraplégica, mas alguns começam a roubar.

Bom, só digo tudo isso porque acho que devemos levar mais a sério a neurociência.

Nas escolas, nos presídios e nos consultórios de Psicologia



Imagina se descobrirmos que os pedófilos tem problemas neurológicos? O que fazer com isso? Continuar culpabilizando-os? O que mudaria nas leis e na punição dessas pessoas?
Sempre achei a pedofilia curiosa. É estranha, cruel (aliás, cada vez mais, no consultório, chego à conclusão que nenhum fator de risco para problemas na vida adulta supera a violência sexual na infância) e sempre imperdoável, mas acontece em todas as culturas e épocas. Por quê? Qual é a origem desta aberração no fluxo normal da sexualidade adulta? Sempre buscamos causas psicanalíticas e ambientais para explicar o comportamento (Ex: quando criança o agressor foi também abusado, pai agressivo, mãe sedutora, insegurança com a própria sexualidade, repressão na família), embora nunca tenha existido um consenso a esse respeito. Só nos esquecemos de procurar por motivos dentro do cérebro.

Devemos, sim, aprofundar os estudos neste sentido, ainda mais com a previsão sombria que os tumores cerebrais serão a próxima epidemia mundial dos próximos séculos. Já disse aqui que acredito nisso.
Claro que não são todos os tumores que causam problemas afetivos (depende da localização, óbvio) e nem todos os problemas de caráter devem ser explicados por disfunções neurológicas, mas já está passando da hora de levarmos o cérebro mais a sério.
Ah, e devemos levar mais a sério a genética também! Muitos comportamentos indesejáveis poderiam ser explicados por esta dupla, neurociência e genética, enquanto perdemos tempo desgastando as as relações ao culpar nossos pais, amigos, namorados e professores por problemas emocionais que poderiam ser comprovados, apenas, com alguns exames assertivos.

Tem vários links e vídeos que falam das previsões tumorais (e agora também: comportamentais) nos cérebros do futuro, mas eu deixo o Jornal Nacional dizer isso na linguagem dos leigos. E de forma ultra ponderada, como preza o bom senso da Rede Globo.





Ah, hoje falei sobre esse assunto bizarro também porque prometi falar de outra história, mas queria, antes de mais nada, introduzir estes dados aqui.
Agora sim continuo no próximo post.